E DEPOIS DA COVID 19: O TEATRO?


E DEPOIS DA COVID 19: O TEATRO?

Não tenho o discurso panglossiano de “o teatro sempre viveu em crise (ou sempre se disse que o teatro estava em crise) e nunca morreu”. Fora boa vontade, ele não corresponde ao rigor da verdade. Mesmo na Europa, desconhece-se notícia de teatro entre os séculos IV/V e o XI/XII. E civilizações houve que viveram – e atingiram magnitudes, mesmo de lazer, fulcrais no seu interior – que desconheceram o teatro, tanto quanto se sabe: pesquise-se em civilizações da África, sobretudo interior, ou no Continente Sul-Americano antes da chegada dos colonos europeus, por exemplo. Contrapor as danças tribais ou cerimónias religiosas de ritualismo por afirmação teatral é esquecer que o teatro o é, como o disse Brecht (e eu há muito que deixei de ser brechtista), no momento em que (nascendo daí) ele se desprende da Religião, para se afirmar actividade própria. A não ser assim, então teatro é tudo o que é mimésis ou diálogo presencial. Mas eu não estou a falar disso, de todo. Tendo tido origem nas manifestações religiosas (de forma evidente, nos seus dois ‘nascimentos’ europeus, na Tragédia Grega e na Dramaturgia Litúrgica medieval), uma celebração de uma Missa – tenha a teatralidade ritual que tenha – é, permanece, um acto religioso (independentemente da maior ou menor Fé de quem a ela assiste ou até de quem a celebra), mas não é, de todo, teatro, se entendido como manifestação artística própria, autónoma e específica. Em boa verdade, o teatro, tal como o conhecemos no sentido para que evoluiu, mesmo tendo muitíssimas variáveis, é um fenómeno predominantemente (ou exclusivamente?) euroasiático, sendo que as civilizações africanas mediterrânicas se inscrevem nessa placa cultural euroasiática. Portanto essa outra coisa de dizer que “o Homem sempre viveu com o teatro” exprime mais um desejo do que a verificação de um facto. O Homem pode viver sem o teatro; por isso mesmo, aliás, é que importa preservá-lo, como constructo civilizacional; de contrário tal não era necessário. A Humanidade, mesmo já no Homo Sapiens, viveu centenas de milhares ou milhões de anos sem teatro. Mesmo só tardiamente é que outros ‘parentes’ entraram em cena: tenham sido manifestações cénicas de proximidade como danças, tenham sido tradições de mera oralidade de contar estórias. Aliás, se nas pinturas rupestres aparecem claramente evocações de diversos aspectos da vida humana, nada indicia qualquer uma de inequívoca alusão a teatro, ao contrário do que no Egipto, 2.500 anos antes de Cristo se tem como certas as representações dos (ou nos) Mistérios de Ísis e Osíris. Ou seja, ele não pertence a uma necessidade imanente do Ser Humano. Assim, clarificado este falso axioma do teatro como sempre existente, podemos falar do que se quer dizer no título do artigo. Dicotómica e simplificadamente, há, parece haver, pelo menos de forma mais visível e em pólos opostos, duas possibilidades, tão mais acentuadas quanto maior for o tempo de duração da pandemia e a necessidade de manutenção destas ou outras (ou mais ou menos agravadas) formas de a prevenir, retardar e combater pelo isolamento. Uma é a de exponenciar os meios de comunicação digital e à distância, encontrando nestas novas formas as expressões que proporcionem estímulos neuro-sensoriais aparentemente idênticos para as necessidades da copresencialidade do teatro1. Podem esses novos hábitos encerrar factores, a seu favor, vários: o poder atractivo dessas formas, a novidade exponencial, a facilidade de acesso, a variabilidade subjectiva do seu usufruto (em calendário de hora e dia e de vezes), a escolha prévia do tipo do objecto absolutamente personalizada, a interactividade, o seu ‘redimensionamento/reconstituição’ a gosto, o baixo custo, o incremento de desenvolvimento de respostas tecnológicas novas e muitas outras coisas, incluindo as que não atinjo ou consigo prever. Ou, em tal caso, no mínimo reduzir o teatro para uma expressão ainda mais minoritária (que já era no nosso país, de forma agravadíssima no século XXI, ainda que por outras razões, políticas, que não cabe aqui dissecar) e torná-lo absolutamente residual no papel a (que deixa de todo de) cumprir. Esta é uma possibilidade real, ainda que seja pensamento do autor destas linhas de que, muito mais para a frente, esse mesmo fenómeno é o que, atingida a saturação do recurso ao digital, vai (poder) reabrir portas ao teatro, caso a Humanidade persista ou reapareça, porque, isso sim, faz parte da sua natural imanência a necessidade da copresencialidade por razões que ultrapassam o sensorial e se encontram no espiritual. Mas também nada garante que a necessidade da copresencialidade (sensorial e mesmo espiritual) não possa ser garantida por outras formas não-teatrais (recreativas e não-recreativas) e os demais aspectos a que o teatro se tornou uma resposta (comunicativa, emocional, imitativa, o que seja) possa ter formas até não-presenciais lúdicas que ‘inutilizam’ a necessidade do construtor teatral… É, por muito que nos custe, uma possibilidade. A outra, inversa, é a da avidez imediata da copresencialidade e das demais necessidades a que se fez referência, revalorizando-as, depois de se ter experimentado de forma radical aquilo mesmo para que a tecno-sociedade digital já nos vinha atirando, determinar um regresso do teatro a uma nova aetatem auream para si. Mas para isso não só tem ele de rapidamente saber ‘tomar o pulso’ a essa mesma oportunidade, como encontrar os mecanismos de alavancagem (desculpem este termo tão de moda!), que lhe permitam recriar um tecido produtivo já antes corrompido pela política de evento, dispersão de verbas e verbas minguadas de financiamentos estatais, desprezo de várias comunidades civis (ir)responsáveis – da esmagadora maioria das autarquias à não menos esmagadora maioria no mundo empresarial e mesmo universitário – e dos erros crassos de onanismo dos próprios criadores. Embora seja bastante plausível que Estado, Universidade e meio empresarial se reeduquem também com esta mesma pandemia, num curto prazo histórico de 10, 20 ou mesmo 50 anos. Mas, de facto, não há ‘modelos’ com respostas nem na psicologia, nem na sociologia, nem na economia, nem na política para esta novidade que é esta pandemia num Mundo acelerado pela globalização. Mas há um domínio, o da filosofia (também hoje esquecida como centro determinante de acção), que permite, no sentido nobre da palavra, especular. [Que é o que aqui se faz] E até se pode admitir que a Humanidade, enquanto Humanidade, chegou ao fim, mesmo que fiquem indivíduos, mais biónicos ou menos biónicos, por aí a escravizar chagas de restos da Humanidade. Ou a esta crise sanitária, a que se seguirão a económica, social e, provavelmente, existencial, outra pandemia, magistralmente retratada por Ionesco num dos seus textos menos conhecidos (2), seja a que se segue concretizando-se em vivência ou somente elemento ficcional para nos repensarmos. 


1 Quando insisto no aspecto da copresencialidade, faço-o por considerar esta como parte indispensável da ontogénese do que o teatro é. A remediação por outros meios criarão novos objectos, tão ou mais conseguidos até, mas que, definitivamente, não são teatro.

2 Refiro-me a “Jeux de Massacre” em que as pessoas estão todas de quarentena, contagiando-se pelo olhar, até se descobrir que o surto pandémico é a própria solidão: publicada na Gallimard, 1981.
Artigo  publicado  no nº 265 (on line) de "As Artes Entre As Letras"
Jorge Castro Guedes (Actor/Encenador)

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